segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Amar é ser cúmplice do sonho alheio



"Quando as pessoas se amam e querem amar-se, selam um pacto: dormir juntas.

E quando se fala "dormir juntos"o sentido é duplo: significa primeiro amar acordado em plena vigília da carne, mas, depois, na languidez do pós-gozo, deixar os corpos lado a lado, à deriva, dormindo, talvez.

Na verdade, os amantes, quando são amantes mesmo, mesmo enquanto dormem amam-se. Agora leia estes versos de Aragón cantados por Ferat:

"Durante o tempo que você quiser
Nós dormiremos juntos".

E penso.

É um projecto de vida, dormir juntos, continuamente.

A mesma ambiguidade: dormir/amar juntos, dormir/acordar juntos, ou então, dormir/morrer de amor juntos.

Deve ser por causa disto que os franceses chamam ao orgasmo de "pequena morte".

Deve ser por isto que os amantes julgam poder continuar a amar mesmo através da morte, como Inês de Castro e D. Pedro, que foram sepultados um diante do outro, para que no dia do reencontro um seja o primeiro que o outro veja.

Amor: um projecto de vida, um projecto de morte.

Se numa noite dessas o vento da insónia soprar em suas frestas, repare no corpo que dorme despojado ao seu lado.

Ver o outro dormir é assunto de muita responsabilidade.

Mais que ver as águas de um rio represado que gerauma fábrica de sonhos, é ver uma semente na noite pedindo um guardião.

Pode ser banal, mas é isto: amar é ser o guardião do sonho alheio.

Os surrealistas diziam: o poeta enquanto dorme trabalha.

Pois os amantes enquanto dormem, amam-se. Amam-se inconscientemente, quando os seus desejos enlaçam raízes e seivas.

O pé de um toca o pé do outro, a mão espalmada corre sobre o lençol e toca ocorpo alheio e, dormindo, abraçam-se animados.

Quando isto ocorre, pode ter vários significados.

Talvez um tenha lançado um apelo silencioso ao outro:"Ajuda-me a atravessar esse sonho", ou:"Vem, sonae este sonho comigo, é bonito demais".

E o outro, às vezes, sem se mexer, parte em seu socorro.

É que certos sonhos, sobretudo os de quem ama, não cabem num só corpo. Transbordam os poros da noite e pedem cumplicidade.

E, se há um pesadelo, aí um agarra-se ao tronco do outro na crispação do instante, e o corpo do parceiro é bóia na escuridão.

Por isto, no ritual do casamento, quando o sacerdote indaga se os que se amam sabem que terão que se socorrer na saúde e na doença, na riqueza e na pobreza, etc... deveria inserir-se um tópico a mais e advertir:... amar é ser cúmplice do sonho alheio.

Passar a metade da vida dormindo ao lado do outro.

Há pessoas que vivem 25 anos - bodas de prata, 50 anos - bodas de ouro, 75 anos - bodas de diamante - ao lado do outro, e não sabem com que o outro sonha.

E há quem passe uma tarde, uma noite ou uma temporada ao lado de um corpo e sabe os seus sonhos para sempre.

Engana-se quem escuta o silêncio no quarto dos que amam.

Estranhos rumores percorrem o sonho alheio.

Não é o rugir do tigre pelas matas.

Não é o bater das ondas na enseada.

Nem os pássaros perfurando a madrugada.

São os sonhos dos amantes em plena elaboração.

E, se numa noite dessas, o vento da insónia de novo soprar em suas frestas, olhe pela janela os muitos apartamentos onde pulsam dormindo os amorosos.

E a noite nunca mais será a mesma!

Autor/a desconhecido/a"

In: Ponto G

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